Como a velha cadeira Louis XVI que Rodrigo Bueno recolheu sabe-se lá em qual depósito, quem sabe esquecida num porão, adormecida sob um cobertor de poeira, bordas e pernas com vestígios do dourado original, forração carcomida de veludo revestindo assento e encosto, um despojo de rotinas domésticas passadas, em convívio íntimo com uma sucessão indeterminada de gentes. O artista, a maneira do que faz com que objetos ou partes de objetos igualmente abandonados em depósitos ou em esquinas à espera dos caminhões de lixo, recolhe o móvel, desperta-o, devolve-o à vida, e faz com que nele rebentem plantas, folhagens vivas e reluzentes, como que celebrando o fato de que, afinal, não há morte, mas transformação contínua, encadeamento de estados e transmutações;
As improváveis arquiteturas de Daniel Murgel, ávido construtor de ruínas, interessado em averiguar as minúsculas ilhas que as pessoas, todas elas, em todos os lugares e cantos do mundo, desde sempre, vêm construindo com o projeto de isolar-se do mundo exterior, produzir uma pele mais espessa e, se possível, opaca, na maior parte das vezes feita de tijolos ou algum material duro mas que não logra conter a fúria da natureza que a vai comendo por dentro, erodindo-a, esmigalhando-a. Ao artista interessa não só o agora mas o futuro do agora, aquilo que está contido no interior das coisas e que, ao contrário do que faz supor nossa mirada desatenta as sutilezas das matérias, não está paralisada, mas silenciosa e sutilmente vivo;
As “camas de gato” urdidas por Edith Derdyk, os feixes de linhas que atravessam o espaço branco enredando-o e enredando o visitante, o imprudente e fascinado visitante, acostumado com a luz propagando-se em linha reta mas não provavelmente com uma luz negra. A linha sempre foi a matéria prima da artista, entendida como um fio solitário que, estirado ou emaranhado, transporta energia em seu corpo delicado, no mínimo a energia despendida no processo de sua própria produção, ou a linha nervo com a qual se alinhavam, juntam-se, soldam-se coisas disjuntas. Graças as linhas obtém-se a tensa estabilidade entre corpos distintos; apresenta-se como homogêneo o que a rigor resulta de uma construção arbitrária, donde se entende o motivo pelo qual lançamos mão da metáfora “você está seguindo a minha linha de raciocínio?” O que dizer então das linhas soltas, libertas de qualquer função, arremetendo-se pelo espaço, conquistando-o, como a instalação que a artista propõe essa exposição?
A palavra/poema/objeto mind /wind, de Arnaldo Antunes, com suas letras recortadas em metal, fixada na parede, dela projetada alguns centímetros, sendo que a primeira delas, por ser basculante, está indecisa entre o eme e o dábliu, M/W, criando um anagrama tridimensional, um poema que se vale do sopro e da sombra para conquistar o espaço da arquitetura ao mesmo tempo em que amplia o da significação. O poeta Arnaldo Antunes sabe do poder das palavras, sabe de sua natureza dúctil, flexível, do que acontece quando se a torce ou faz dar uma cambalhota, como é o caso aqui. Feitas qualquer uma dessas operações sobre a carne de uma palavra, qualquer uma, ela dispara para longe de onde até então a havíamos localizado. Seu significado parecia ser um e somente um mas agora é outro e outro mais. Que demônio haverá se insinuado através dela? O que a perdeu? Nesta pequena peça temos uma lição extensa: toda palavra – e o que dizer então de uma sentença? De um parágrafo? - é uma construção instável, bastando apenas um sopro para que ela se desarranje.
As obras reunidas em PARQUE DE TRANSGRESSÕES, assim chamada porque outra coisa não é um espaço expositivo dedicado a apresentar trabalhos experimentais, como os descritos acima, além dos outros que ocuparão os espaços das duas galerias, SIM e Simões de Assis, pela primeira vez reunidos num só projeto, as obras aqui reunidas, dizia, têm por fundamento a instabilidade.
Em relação a instabilidade seria conveniente lembrar, logo de saída, que apesar do nosso desejo de que as coisas e fatos se acalmem ao menos por um momento, do nosso resistente apego à ideia clássica de perfeição como algo associado a estabilidade, como um ser que finalmente tenha cessado de se modificar, que apesar das evidências em contrário, como a certeza da inevitabilidade da alternância entre os dias e noites, o sono duradouro das pedras, tudo, mas tudo mesmo, é instável, está em movimento. A começar por estarmos pousados sobre uma esfera que gira entorno de seu próprio eixo na estonteante velocidade de 1675 Km/h e que, por sua vez, gira ao redor do sol a 107 mil Km/h, o que é pouco se comparado à velocidade de rotação galáctica, que é de 810 mil Km/h, tudo isso dentro da Via Láctea, em rota de colisão com a galáxia de Andrômeda numa velocidade de 230 mil km/h. Portanto, não admira que não consigamos acompanhar os acontecimentos -o que dizer entendê-los em profundidade-, da política, das artes, das relações interpessoais, da produção do conhecimento humano que, segundo estudo recente, concluiu que nos últimos dez anos produziu-se mais saber que nos cinco mil anos anteriores, conclusão bombástica, sujeita, como todas as afirmações peremptórias feitas pelas ciências, a ser revista, criticada, ultrapassada.
PARQUE DE TRANSGRESSÕES contempla exercícios de desordem da gravidade, dos sentidos, das cores, da relação entre natureza e artifício, dos objetos pretensamente plácidos, embora em sua maioria ameaçadores, com os quais montamos o aconchegante cenário doméstico, da tensão entre a matéria pesada e o desejo intangível e, por fim, a desmontagem da própria noção de arte. Basta passar em revista todos os trabalhos expostos para concluir-se que, para começo de conversa, nenhum deles se encaixa com tranquilidade nas clássicas categorias de pintura, escultura e desenho.
Para ficar em mais alguns exemplo, como devemos nos referir a pouca corporeidade da obra apresentada por José Bechara, composta por placas de vidro, encostadas e levemente inclinadas contra a parede, de modo a garantir que não caiam para frente, ou suspensas por finos cabos de aço? Apoiadas entre si e contra a arquitetura, as placas de vidro são dispostas em posições desencontradas, produzindo suaves variações cromáticas, efeito da intercessão desigual das placas entre si. Ao mesmo tempo emitem reflexos embaralhados, jogos entrecruzados de sombras e das linhas verticais, horizontais e diagonais, cruzando o espaço, interceptando-se, desviando a atenção de um lado para o outro.
E o que dizer sobre as cores eminentemente artificiais que aqui aparecem nas obras de Tony Camargo, Delson Uchoa e Fabio Cardoso? As fontes de todas não são os convencionais tubos de tinta encontrados nas casas especializadas mas aplicadas em cartazes, letreiros, placas, rótulos, roupas e tecidos, das chapas de acrílico e dos planos de plástico.
O Videomódulo de Tony Camargo situa-se entre pintura, performance, vídeo arte, assemblage, o que torna risível, por impossível, sua classificação. Com o rosto invariavelmente encoberto, estratégia de ampliação do mistério, o artista, circundado e mal equilibrando um conjunto disparatado de objetos, divide o campo da tela com planos coloridos e retráteis, verdes, vermelhos, azuis, amarelos, depende da obra, que se expandem e se contraem. Disputando espaço com a cena protagonizado pelo artista, num vaivém intermitente que coincide com a precariedade da sua pose, impossível de ser mantida por muito tempo, ainda mais sob ataque constante. As cores puras de um lado parecem avançar sobre a cena absurda talvez porque estejam na pele dos objetos que a estruturam.
Na arte a instabilidade é o resultado direto do exercício da transgressão, da vontade consciente de se impor contra as normas, contra o que está estabelecido, da necessidade de prosseguir adiante pela crença que o futuro do ser reside em parte no que já foi conquistado mas, sobretudo, em tudo aquilo que ainda não foi pensado, no que se pode ser encontrado quando se avança por um território escuro, que só pode ser designado através de invenção de novas formas de linguagem ou pela reinvenção das já existentes. Fazer arte significa jogar com ela própria, rever seus próprios pressupostos, o que é o mesmo que indagar, com método e sem subterfúgios: o que é arte? Uma pergunta que traz consigo a lembrança da dificuldade em se pretender fixar um conceito que desde o nascimento do moderno, no século XIX, vem afirmando sua repulsa a classificações. Daí seu gosto pela ironia, pelo modo matreiro de jogar com seus próprios elementos constitutivos, piscando-nos o olho quando faz qualquer afirmação, o que serve para sublinhar sua ambiguidade, os ardis que ela enreda no uso da linguagem da qual se serve e que contribui para construir.
A arte é contemporânea quando impulsionada pelo desejo de transgressão, quando traz consigo, à flor de sua pele, a consciência de sua finitude, uma espécie de vingança através dos tempos e espaços que ela sistematicamente concebe, contra o desejo de estabilidade, quietude, calma e morte.
Agnaldo Farias