O mar que eu sou
Emblema e enigma: o mar e eu. Entender-se como corpo d’água conforta e assola: provê imagens táteis sobre as conexões pessoais, os desaguamentos, as bifurcações e as nascentes; ao mesmo tempo que se trava um infinito, corpo oscilante em mar aberto cujos limites ultrapassam o horizonte visível. Assim, valendo-se da relação entre um corpo d’água e a subjetividade humana, a psicanálise moderna foi estruturada – Narciso, ao deparar-se com sua imagem refletida na pele de água que contemplava, deslumbrou-se com sua própria aparência. O mito permite também pensarmos em um fluxo análogo, ambíguo, espelhado: o rompante do complexo de autodescobrimento também acontece ao abismar-se com o mar que havia em si, com o infinito que era. A presente exposição reverbera essas inquietações vindas em ondas: “O mar que sou” apresenta trabalhos de cinco artistas brasileiros, em diferentes questionamentos acerca de si e da relação com outras existências.
Thalita Hamaoui apresenta paisagens agravadas pela imaginação, registrando suas intenções gestuais e inquietações quanto à pintura com fluida profusão cromática. Por meio de um embaralhamento de planos, a artista rejeita o automatismo do discurso histórico-pictórico que determina figura e fundo. Diálogos entre cheios e vazios são dosados em uma pintura propositalmente heterogênea, em que corpos densos de bastão a óleo se relacionam em harmonia com planos em cores extremamente diluídas a evidenciar a tela crua. Desse modo, linhas sugerem horizontes ao mesmo tempo que propõem outras perspectivas, com planos entremeados que podem ser lâminas de água, trechos celestes, pedaços de solo ou apenas corpos de cor, sem intenção representacional ou mimética. Hamaoui aponta para a ambiguidade de elementos abstratos tenderem, em compreensões usuais, para aproximações a seres botânicos e biológicos, como se a complexidade de fluxos conceituais fosse represada por assimilações naturais. É válida, portanto, a leitura de cada elemento visual nas pinturas da artista como traço autobiográfico, sem obrigação com a fidedignidade natural, mas com íntimo compromisso com a investigação de si mesma.
As indistinções propositais entre organismos que sugerem configurações biológicas e resultados de operações geométricas abstratas também se fazem presentes na obra de Antonio Malta Campos. O pintor paulistano expressa, através de profunda erudição, experimentos pictóricos que se conectam com as múltiplas manifestações de vida e de existência, em cores marcantes e linhas sinuosas. O engenho de uma poética sempre cambiante reflete questionamentos existenciais pessoais a serem respondidos pela plataforma da pintura, embora transdisciplinarmente atravessante, a invadir a filosofia, a semiótica e a literatura a fim de tornar a pintura impura.
As interseções dos caminhos da água e das reescritas da história social na Amazônia são interesses do artista belenense PV Dias. A música paraense, em suas complexidades tecnológica e rítmicas, funde o agito do ritmo caribenho e de sua influência afro diaspórica com tradições musicais indígenas e sampleados digitais. Os ímpetos musicais que se caracterizam como música brasileira na metade do século 20, como o samba e a bossa nova – e reverberações posteriores, como a tropicália –, eram potentes no sudeste brasileiro. As ondas de rádio que chegavam ao Pará vinham predominantemente da América Central e de países ao norte do Equador, como a Colômbia e a Guiana Francesa, já que as rádios de São Paulo e do Rio de Janeiro eram geograficamente mais distantes. Dias analisa esse hibridismo cultural codificado ao investigar as conexões dos rios da bacia amazônica: as laterais das telas iluminam como as lâmpadas LED das aparelhagens de tecnobrega; as raízes de vitória-régia tornam-se cabos de som em amplificadores; os pássaros se comportam como alto-falantes de rádios em postes nas cidades da região; os cipós das árvores remetem ao entremeado das redes de internet.
As paisagens de João Trevisan refletem sobre a introspecção pessoal materializada em horizontes fabulados. O artista brasiliense se relaciona com a terra a partir de seus vínculos com o budismo e sua formação com a geografia, entrelaçando sistemas técnicos ocidentais com tradições artísticas orientais – a possibilidade de refletir sobre o horizonte na verticalidade, por exemplo, como em biombos sanfonados asiáticos. A partir de memórias familiares, como viagens à serra ou a morte do pai, o artista propõe pinturas de agudas montanhas que cercam um lago, criando lugares de contemplação e proteção. Esse refúgio aproxima-se da busca de plenitude mental por serem reverberações da obra abstrata de Trevisan, cujas pinturas são compostas por dezenas de camadas de base, tinta a óleo e velaturas em encáustica, todas essas espaçadas por longos dias de processo. As cerdas dos pincéis criam minúsculos vales e montes de tinta onde a luz interage de modo quase tátil, demandando tempo do observador, assim como posto na fatura das obras.
Ao apresentar uma pintura híbrida entre retrato e paisagem, Cícero Dias anuncia a integração do ambiente como parte constituinte de si. As águas sempre o embalaram: a costa pernambucana, onde nasceu; a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, que se encontrava ao fundo de sua primeira exposição em 1928 com Tarsila do Amaral, Ismael Nery e Di Cavalcanti; o oceano Atlântico, que o levou à Europa e o fez dialogar com as vanguardas artísticas ocidentais; o rio Sena, em Paris, segundo lar de Dias, onde faleceu décadas depois, consolidando um incontornável legado. A excitação do mar como portal e caminho, protagonista constante em sua obra, sempre o motivou. Na histórica pintura presente nessa exposição, a alegoria do autorretrato ladeia a visão da malha urbana de Olinda, como se vista à distância, em partida, em sopros que a desvanecem no canto superior direito. O sonho flui em água e volta em memória, numa esperança ambígua de partida e de reencontro.
Os trabalhos da exposição se entrecruzam, em relações estabelecidas pelo observador que se materializam como reflexos de suas próprias experiências, afinidades e memórias. O mar, sem-fim de chuva turva ou manancial de água cristalina, se oferece como ferramenta alargadora a prover respostas a perguntas sempre mutáveis, cuja efemeridade não diminui sua importância. Ao observar as obras, similarmente à fluidez das águas, fluxos de consciência penetram caminhos de introspecção, em constante inserção do mundo, em incessante colisão consigo mesmo.
Mateus Nunes