O Meio é a massagem
“O meio é a massagem” ou “o meio é a mensagem”? O título dessa exposição parte de uma anedota, não tão antiga assim, que ainda reverbera em nosso tempo, retomando quando, em 1967, Marshall McLuhan (comunicador e filósofo canadense) publicou o livro “O Meio é a massagem”, um argumento acerca dos meios tecnológicos e sua determinação no processo informacional. A dubiedade do título da obra virou motivo de ampla especulação, haja vista a dúvida se havia sido proposital ou acidental a alteração de “mensagem” para “massagem” na primeira edição impressa. O que se sabe propriamente é que o título se manteve como “massagem” e, curiosidades à parte, seu conteúdo continua sendo inteiramente refrescante, reverberando em discussões conceituais – como nessa mostra. Acerca do meio/medium, temos sua integração, na contemporaneidade, à linguagem midiática. Entretanto, o termo se assentou bem como sinônimo de “plataformas plásticas” no campo das artes visuais, referindo-se às diversas técnicas e materialidades possíveis, projetando as decisões visuais artísticas e suas percepções. Na justaposição de meios, deparamo-nos com a graciosidade irrestrita das tantas possibilidades de mesclagem, remixagem e aposição, fugindo da determinação em direção à experimentação material.
Na mostra, nos debruçamos sobre o diálogo entre nomes emergentes no cenário contemporâneo atual e artistas notadamente contemporâneos e modernos que possuem carreiras consolidadas. Nesses meios-massagens, há um entranhamento entre os trabalhos, um processo de contágio entre os artistas, que, de modo tão perspicaz, conseguem absorver-se na experimentação das linguagens. Não satisfeitos com as limitações das especificações dos meios, contemplamos o pensamento visual variado que se amalgama no espaço expositivo.
Intrinsicamente permeados, cada um dos artistas presentes na exposição nos demonstra suas extensões: Alberto da Veiga Guignard, Antônia Perrone, Bruna Amaro, Carmelo Arden Quin, Diambe, Emiliano Di Cavalcanti, Efigênia Rolim, Eliane Prolik, Emerson Freire, Gabriel Ussami, Hugo Mendes, Jorge Guinle, Larissa de Souza, Lucia Laguna, Mari Ra, Maria Livman, Meia, Niobe Xandó, Raphael Oboé, Rodrigo Andrade e Rodrigo Torres.
Os artistas que partilham uma trajetória mais recente estão, de algum modo, afetados pelo repertório dos que antes vieram; esses que, no campo da experimentação, desbravaram as múltiplas possibilidades das linguagens para culminarem em processos genuinamente contemporâneos, demonstrando nesse espaço uma apreciação mútua entre produções artísticas. O tempo e sua circularidade em muito se refletem nessas ativações expandidas, das nuances entre pintura e escultura aos atravessamentos que flutuam nesse conjunto de artistas.
Neste entrosamento, se permite que os artistas se avizinhem, partilhando perspectivas e materialidades. As linhas configuram-se nos planos fraturados da paisagem de Lucia Laguna (Campos dos Goytacazes, 1941) desembocando no traço contínuo do aço curvado de Eliane Prolik (Curitiba, 1960) que aciona o espaço juntamente com o fundador do Movimento Madi, Carmelo Arden Quin (Rivera, 1913 - Savigny-sur-Orge, 2010), e suas molduras móveis de madeira.
O gesto do alinhavar se revela de maneira proeminente tanto nas miçangas e tecidos de Bruna Amaro (São Paulo, 1988) quanto nas assemblagens de Efigênia Rolim (Abre Campo, 1931) que extrai da matéria-prima cotidiana residual, sua força. Ambas engendram uma evasão criativa dos convencionais contornos das molduras, desafiando categorias que subestimam a arte têxtil, demonstrando de tal forma sua potência.
Os artistas propõem camadas de sobreposições técnicas tal como no uso aliado de serigrafia com a cera da encáustica, investigando a multiplicação da imagem nos meandros da gravura e da pintura nos trabalhos de Antônia Perrone (São Paulo, 1996). Com a associação da madeira com o trabalho em resina, Hugo Mendes (Curitiba, 1981) concebe um imaginário do corpo/natureza. São profusas as maneiras dos trabalhos serem ativados, a propor um contraponto do aparentemente visual com objetos naturais e representativos da paisagem.
A exploração de diversas materialidades é o cerne da exposição. Com robustas texturas da tinta a óleo nas pinturas de Rodrigo Andrade (São Paulo, 1962), vemos a formação de uma paisagem soturna entremeada nas camadas densas de matéria acumulada. No políptico de Gabriel Ussami (São Paulo, 1996), o movimento brilhoso, resultante da densidade da tinta acrílica acumulada, simula o movimento de uma água turva que se repete, criando um chiado visual.
No campo escultórico, vemos a técnica milenar da porcelana sob uma feitura absolutamente contemporânea em Rodrigo Torres (Rio de Janeiro, 1981) e Maria Livman (São Bernardo do Campo, 1996). Friccionam o real e o ficcional, a figuração e a abstração, cristalizando e suspendendo o tempo das laranjas e figos em suas composições.
Profundamente influenciado por técnicas pré-colombianas e dos povos originários contemporâneos, Raphael Oboé (Jundiaí, 1995) realiza cerâmicas com processos de pintura negativa e queima em baixa temperatura. Aproximado à pungente expressão aflitiva na pintura de Larissa de Souza (São Paulo, 1995), as obras intencionam agir de modo a ressignificar politicamente a obra modernista de Emiliano Di Cavalcanti (Rio de Janeiro, 1897 – 1976), datada de 1944, evocando novas epistemologias acerca das narrativas na história da arte.
Embora apresente um recorte histórico e estético, circunscrevendo significados, a mostra retoma as dinâmicas de contaminação e atravessamentos, em que se iniciam e se findam as obras a fim de recomeçarem ciclicamente. Os delineamentos de grandes massas de cor de Mari Ra (Cotia, 1996), ora mais sugestivas, ora mais abstratas, versam com os seres curiosos criados por Niobe Xandó (Campos Novos Paulista, 1915 - São Paulo, 2010) há tantas décadas. Consubstanciam-se com as formas orgânicas em têmpera de Diambe (Rio de Janeiro, 1993) e seu universo de paisagens fabuladas inebriantes.
A tinta com escorrimento congelado da pintura automotiva sobre resina e fibra de vidro de Emerson Freire (Mauá, 1995) cruza e explode nas texturas e nuances cromáticas de Jorge Guinle (Nova York, 1947?- 1987). Originada na coleta de materiais descartados, a pintura de Meia (São Paulo, 1994) propõe uma nova existência pictórica a estes componentes que reverberam ao lado do detalhismo de Alberto da Veiga Guignard (Nova Friburgo, 1896 - Belo Horizonte, 1962), demonstrando como processos de artistas contemporâneos se abastecem, em possibilidade, das experimentações poéticas de seus precursores.
Não se trata de um apego a fiapos tênues de relações meramente formais, mas a um processo de alargamento e articulação poética, da fluidez das barreiras estanques das técnicas, criando relações imagéticas rumo a um diálogo transgeracional e simbólico. Neste torvelinho global de informação, prospera a contaminação cruzada que permeia as artes visuais, sendo “O Meio é a Massagem” uma exposição do que se produz na contemporaneidade. Não há nada de inovador e, no entanto, absolutamente tudo o que massageia nosso olhar é único, singular, resultado de correlações que se sustentam neste tempo/espaço.
Dessarte, presenciamos a materialização do diálogo histórico geracional, o frescor da experimentação da juventude aliada à permanência do conhecimento já galgado de artistas renomados, em vida ou póstumos. Nos habituamos a pensar de modo fragmentado, herança tardia da sociedade moderna. Aqui, propomos uma visualidade contínua, constelar e atravessante, na qual não há começo, meio e fim, mas cruzamento, propagação, sobreposição, influência recíproca e relações sincrônicas. Somos envolvidos, portanto, nesse continuum ritmado que se decanta em nós.
Mariane Beline